Basta! de Feminicídio e violência doméstica

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Violência contra a mulher

Com a pandemia da COVID-19, o número de casos de feminicídio e violência doméstica cresceu no Brasil e no mundo, escancarando o problema. Em novembro, o Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres está longe de ser uma data comemorativa

Uma vida sem violência é direito de todas as mulheres, mas, infelizmente, em todo o mundo, inúmeras delas sofrem diariamente algum tipo de violência: física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral.

Muitas choram caladas por diversos motivos: medo, insegurança, vergonha, desinformação, falta de apoio. E lamentavelmente tantas outras são vítimas fatais desse crime injustificável. Com a pandemia de COVID-19, o cenário de violência contra a mulher, que já era assustador, tornou-se mais grave ainda. De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU) Mulheres, desde que foi decretada a quarentena, observou-se o crescimento dos casos de violência doméstica, não apenas no Brasil, mas em vários países, como França, Espanha e China.

No Brasil, os casos de feminicídio no primeiro semestre deste ano aumentaram 1,9% em relação ao mesmo período do ano passado, com 648 vítimas, segundo o Anuário de Segurança Pública (2020), produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). O número de acionamentos da Polícia Militar também subiu nesse período em 3,8%. Foram 147.379 chamados no 190 para registrar violência doméstica.

“Certamente a maior parte dessas situações de violência já existia antes da pandemia, mas a necessidade de distanciamento social agravou a situação ao manter por maior tempo, no mesmo ambiente, vítima (a mulher) e agressor (na maioria das vezes o parceiro), proporcionando a ocorrência de conflitos que culminam com a violência física e psicológica do agressor sobre a vítima”, analisa a Dra. Silvana Quintana, professora-associada do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP) e membro da Comissão Nacional Especializada (CNE) de Trato Genital Inferior da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo).

Chama atenção no anuário uma diminuição no número de registros de denúncias em delegacias – redução de 10,9% nos registros de lesão corporal dolosa, 16,8% nos de ameaças, 23,5% nos de estupro de mulheres e 22,7% nos de estupro de vulneráveis. Silvana comenta que essa queda de ocorrências pode passar a falsa impressão de que o número de violência contra a mulher caiu. Mas não é bem assim. “Possivelmente, como a maior parte dos crimes cometidos contra as mulheres no âmbito doméstico exige a presença da vítima para a instauração de um inquérito, as denúncias começaram a cair na quarentena em função da presença mais intensa do agressor nos lares constrangendo a mulher, de forma que ela não possa realizar uma ligação telefônica ou mesmo dirigir-se às autoridades competentes para comunicar o ocorrido. Ao compararmos os números do primeiro semestre de 2019 com os do primeiro semestre de 2020, observamos, no Seavidas-HCFMRP-USP, um aumento significativo de casos de violência física e sexual contra mulheres e crianças/adolescentes”, argumentou a médica, que também é coordenadora científica da Associação de Ginecologia e Obstetrícia de São Paulo (Sogesp) e membro do Serviço de Atenção às Vítimas de Violência Doméstica e Sexual (Seavidas) do Hospital das Clínicas da FMRP-USP.

Problema mundial que não distingue cor, classe social ou raça, a violência contra a mulher é, ou deveria ser, injustificável e intolerável, e todos os países precisam adotar medidas urgentes para acabar com esse tipo de crime. Foi para isso, e com os objetivos de revelar a gravidade do feminicídio e estimular a informação sobre o tema, que a ONU instituiu, em 1999, o dia 25 de novembro como o Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres.

Contudo, as ações para evitar o crime não podem ficar centralizadas nessa data nem na esfera governamental. “A prevenção da violência contra a mulher é uma tarefa de toda a sociedade”, afirma o presidente da CNE de Violência Sexual e Interrupção Gestacional Prevista em Lei da Febrasgo, Dr. Robinson Dias de Medeiros.

Ele explica que a violência sexual tem viés multifatorial e, como bem apontou Silvana, um agravante: mais de 70% dos agressores sexuais são pessoas muito próximas da vítima, não raras vezes, parentes. Os indicadores também revelam que menos de 10% dessas vítimas procuram ajuda no sistema de saúde ou na rede protetiva articulada de segurança, deixando uma lacuna enorme de vulnerabilidade dessas pessoas na sociedade.

“A violência contra a mulher é uma questão de difícil enfrentamento e precisa ser discutida na família, na escola, na graduação de Medicina e nos meios de comunicação. A saúde pública e a segurança pública precisam dar as mãos e construir um atendimento de qualidade que beneficie o cuidado dessas pessoas que sofrem de violência, especialmente a sexual”, ressalta Medeiros.

O médico, que preside a Associação de Ginecologia e Obstetrícia do Rio Grande do Norte (Sogorn) e é vice-chefe do Departamento de Tocoginecologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), destaca o papel dos ginecologistas e obstetras nesse desafio, que passa pela responsabilidade profissional, mas também pela necessidade de atualização e educação continuada. “Muitas vezes, o profissional está na ponta de um serviço para realizar esse atendimento à vítima de violência, mas não está adequadamente preparado como deveria”, lamenta.

APOIO DA FEBRASGO

Nesse sentido, Medeiros explica que a Febrasgo, por meio de suas CNEs, se coloca à disposição dos ginecologistas e obstetras para esclarecer dúvidas e orientar sobre procedimentos, realizando debates com conteúdo científico e profissional envolvendo questões práticas relacionadas à ética, ao respeito à vítima, ao conhecimento da pessoa e do profissional e à excelência do atendimento, baseado na evidência científica e nos normativos assistenciais e constitucionais existentes.

Exemplo disso foi o fórum “Aborto Previsto em Lei na Violência Sexual”, promovido em setembro, pela internet, com a participação de juristas e médicos especializados no assunto (confira o link do evento no box). O debate foi promovido cerca de um mês depois que um aborto legal feito em uma criança de 10 anos, vítima de estupro, virou polêmica e ganhou destaque nacional e internacional. A criança morava no Espírito Santo, mas foi levada para Recife (PE) a fim de realizar o aborto no Centro Universitário Integrado de Saúde Amaury de Medeiros da Universidade Estadual de Pernambuco (Cisam-UPE), referência no atendimento à saúde da mulher.

VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA MENORES

Essa é outra chaga que macula nossa sociedade. No ano passado, 57,9% das vítimas de estupro tinham no máximo 13 anos de idade. Durante a pandemia, com as escolas fechadas, os casos devem aumentar, uma vez que as crianças e adolescentes passam mais tempo dentro de casa, em contato com o possível agressor.

Olímpio Barbosa de Moraes Filho, gestor executivo do Cisam-UPE, professor adjunto da Faculdade de Ciências Médicas da UPE e diretor financeiro da Febrasgo, ressalta que todos os médicos que atuam no consultório, no ambulatório ou no hospital devem estar atentos para perceber qualquer sinal ou comportamento que indique que aquela paciente pode ter sofrido abuso e devem estar prontos para acolher e adotar medidas de proteção para amenizar o sofrimento e reduzir as sequelas ou complicações da violência.

“O fato de existirem serviços de atendimentos às vítimas de violência não desobriga os demais ginecologistas e obstetras de estarem atentos a esse problema. É obrigação do médico oferecer o abortamento para todas as meninas que engravidem abaixo de 14 anos vítimas de exploração sexual e outros tipos de estupro”, afirmou o Dr. Olímpio, explicando que cerca de 70% das vítimas de estupro são crianças e adolescentes. “É inadmissível que a grande maioria dessas crianças e adolescentes não tenha acesso ao aborto previsto em lei, quando nós sabemos que abuso sexual e gravidez nessa situação são a principal causa de suicídio e de tantos outros danos às sobreviventes.”

Para o médico, que já realizou vários abortos legais, a sensibilidade de perceber a situação de vulnerabilidade das crianças e adolescentes e encaminhá-las para o atendimento adequado, onde possam encontrar uma rede de apoio, salva vidas. “É muito importante lembrar que o médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje; mas, por outro lado, é obrigação do médico garantir à vítima o exercício do direito de decidir livremente sobre essa escolha, dando informações corretas e imparciais, além de encaminhá-la para um serviço ou colega para que esse direito seja garantido. Precisamos ficar atentos”, disse o Dr. Olímpio.

JORNADA DE SOFRIMENTO ATÉ O ATENDIMENTO

Como se não bastassem toda dor e trauma causados pela violência, as vítimas que resolvem procurar ajuda enfrentam uma longa jornada, que envolve, muitas vezes, humilhação, sofrimento e riscos à saúde, por causa da falta de informação e de acesso a atendimento médico imediato e de qualidade. “Existem poucos hospitais no Brasil que oferecem acolhimento e tratamento para as vítimas de violência sexual. Ainda estamos muito longe do mínimo necessário para acolher essas pessoas”, denuncia o Dr. André Malavasi, diretor da Ginecologia do Hospital Pérola Byington, em São Paulo.

No litoral norte de São Paulo, por exemplo, não há nenhum centro de referência para acolher as vítimas de violência sexual. A mulher que sofreu estupro nessa localidade não consegue ter o atendimento primário na própria cidade e não recebe a profilaxia para doenças sexualmente transmissíveis e prevenção da gravidez. Mesmo se estiver grávida, ela tem que peregrinar até o Pérola Byington, na capital paulista, a fim de fazer o aborto previsto em lei. “Infelizmente, nós recebemos um número absurdamente alto de mulheres que têm que viajar quilômetros da sua residência para terem seus direitos constitucionais garantidos. No ano passado, realizamos 510 interrupções gestacionais, e 80% dessas mulheres não puderam fazer o atendimento em seu domicílio”, expõe Malavasi.

Há um detalhe importante nessa história que evidencia a gravidade do problema: “Qualquer hospital, público ou privado, tem capacidade para fazer esse atendimento, pois não existe uma exigência específica, como em casos de transplante ou cirurgia cardíaca”, alerta Malavasi, que também atua como coordenador da Obstetrícia do Hospital do Servidor Público Municipal e diretor da Sogesp.

Segundo ele explica, o atendimento à vítima de violência sexual utiliza medicações totalmente gratuitas, fornecidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) com protocolo que está disponível on-line para quem quiser conhecer, e procedimento ginecológico simples de ser conduzido, inclusive por um residente de ginecologia e obstetrícia.

“Os procedimentos fazem parte do nosso rol de atuação; não existe nada específico em relação a isso. Portanto, o que nós infelizmente diagnosticamos é que existe ainda falta de acesso surpreendentemente alta para essas vítimas de violência sexual. É muito frequente instituições privadas não fazerem esse tipo de atendimento e mandar para o Pérola Byington. Isso, no entanto, não faz sentido algum”, afirma.

São vários os motivos que levam os hospitais a assumirem essa postura omissa no atendimento às vítimas de violência sexual. Um deles, aponta Malavasi, é para evitar se envolver com o problema. “É muito fácil dar as costas para o problema. Quando se faz esse tipo de atendimento, o médico eventualmente pode ser chamado como testemunha da violência que a vítima sofreu ou ter que apresentar um laudo.”

COMBATE À DESINFORMAÇÃO E ADOÇÃO DA TELECONSULTA

Se por um lado é fundamental que os municípios, serviços de saúde e hospitais se organizem para prestar assistência às vítimas de violência doméstica e sexual, por outro, é essencial munir a sociedade de informação, a começar pelos médicos que estão diretamente ligados ao atendimento das mulheres.

A Dra. Silvana ratifica que os ginecologistas e obstetras precisam conhecer os fluxos de atendimento para as vítimas de violência, que deve ser customizado para cada região. “Caso não esteja disponível, é fundamental que os profissionais de saúde cobrem dos gestores municipais e estaduais no serviço público e na saúde suplementar essa organização. Além disso, precisamos conhecer os protocolos assistenciais para a assistência dessas vítimas, como a norma técnica para assistência humanizada às mulheres vítimas de violência sexual, publicada pelo Ministério da Saúde em 2015”, recomenda a integrante do Seavidas.

Com o objetivo de reunir os ginecologistas, obstetras e outros profissionais da área da saúde e do direito que atuam nos serviços de atendimento às vítimas de violência, a Dra. Helena Borges Martins da Silva Paro, professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e secretária da CNE de Violência Sexual e Interrupção Gestacional Prevista em Lei da Febrasgo, teve a ideia de criar, em setembro de 2019, um grupo no WhatsApp para trocar informações sobre os casos de violência que chegam para atendimento e padronizar a qualidade do serviço.

O grupo começou com 13 membros e hoje já são mais de 100 participantes, representando mais de 40 serviços brasileiros. “Trocamos experiências, compartilhamos informações e tiramos dúvidas uns com os outros. Os casos mais complexos são discutidos em reuniões mensais por videoconferência”, conta a Dra. Helena, que também é coordenadora geral do Núcleo de Atenção a Vítimas de Agressão Sexual (Nuavidas) do Hospital de Clínicas da UFU.

Segundo ela, o grupo virtual foi uma forma de reunir diversos profissionais que atuam no atendimento às vítimas de violência e que, muitas vezes, trabalham de forma isolada. “Nosso serviço no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia, por exemplo, tem uma equipe de profissionais de saúde reduzida. Somos só eu e outra ginecologista obstetra em serviço que assistem os abortos nos casos de violência sexual. O grupo nos ajuda a nos integrar com outros profissionais do Brasil todo”, diz a médica.

As pautas são bem atuais, como a questão do aborto acima de 22 de semanas, que foi tema de uma das reuniões do grupo antes mesmo de estourar na mídia o caso da menina do Espírito Santo, que realizou o aborto legal no Recife (PE).

Quem tiver interesse em participar do grupo pode enviar um e-mail para violenciasexual@febrasgo.org. br e a solicitação será analisada.

Nessa linha de usar a tecnologia a favor de um processo mais célere, com vista à saúde dos pacientes, a Dra. Helena destaca ainda a experiência positiva que o serviço de Uberlândia vem tendo com a teleconsulta. Em agosto, o Núcleo de Atenção a Vítimas de Agressão Sexual do Hospital de Clínicas da UFU teve a primeira mulher em protocolo de aborto em casa, com acompanhamento a distância dos profissionais de saúde.

Embora o protocolo de aborto por teleconsulta só possa ser aplicado a vítimas de estupro com idade gestacional de até nove semanas, ele já representa um grande avanço no tempo de atendimento a essas pacientes. “Aqui em Uberlândia, 80% das mulheres vítimas de estupro chegam nessa idade gestacional. Então, tivemos uma diminuição significativa na necessidade de internação, ocupação de leitos hospitalares e, consequentemente, dos riscos para essas mulheres”, avalia a Dra. Helena.

No Brasil, a telemedicina foi autorizada só em março deste ano pelo Conselho Federal de Medicina, após o início da pandemia do novo coronavírus. Por isso, um dos desafios é reunir evidências científicas sobre o uso da teleconsulta no atendimento às vítimas de estupro. “O outro é orientar e monitorar o autocuidado a essas pacientes que estão fragilizadas e sendo acompanhadas por profissionais de saúde a distância. Mas estamos avançando”, garante a professora da UFU.

No plano nacional para eliminar a violência contra as mulheres, o desafio é imenso e são necessárias mudanças profundas. “Temos uma sociedade ainda patriarcal, reforçando uma masculinidade violenta, que vê a mulher como submissa ao homem. Essa visão é projetada tanto para as mulheres que são vítimas de violência quanto para a sociedade e também para os homens. É necessária uma mudança de postura, acesso à educação que mostre que homens e mulheres são sujeitos de direitos iguais e uma política de valorização das mulheres”, afirma a Dra. Silvana Quintana.

Ela acredita que essas medidas poderão promover a necessária justiça social, dar oportunidade de educação e saúde para as mulheres, sobretudo as negras, e colocar um fim à violência. “Temos que ser firmes e combater a desigualdade, precisamos fortalecer as mulheres para que acreditem em uma situação de igualdade. Até que consigamos mudar essa realidade, o que precisamos é acreditar nas mulheres, em suas histórias, protegê-las e punir os agressores. Esta é uma luta de todos; como cidadãos, precisamos cobrar educação de qualidade para a população; como profissionais de saúde, precisamos prestar assistência humanizada às vítimas de violência doméstica e sexual, exigindo dos gestores condições adequadas. O desafio é grande, mas a sintonia entre todas estas medidas permitirá que as mudanças sejam implementadas e mostrem resultado”, finaliza a médica do Seavidas. 

Por Letícia Martins

Fonte: Revista Femina – Novembro 2020

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