Segundo meu entendimento, o “ser médico” atualmente expõe uma genuína odisseia seguida passo a passo, cada um, circundado por silencioso sacrifício e ocultas renúncias. Entre as múltiplas vicissitudes, enfrentadas no transcorrer desta árdua saga, destaco:
Desfazer-se, de uma boa parcela dos anos dourados da juventude, antes mesmo de ingressar no curso médico, dedicando-se, quase que em tempo integral, ao estudo e frequentando os conhecidos “cursinhos pré-vestibulares”, visando a ter melhores chances de superar uma concorrência, cada ano mais acirrada e competitiva, no concurso Vestibular.
Enfrentar, após o ingresso, um dificultoso e dispendioso curso de Medicina, talvez o mais árduo e complexo entre os outros universitários, tamanho o volume de conhecimentos especializados que deve absorver durante os seis anos de graduação.
Desempenhar um esforço sobre-humano durante curso de graduação, onde o aprendizado teórico e o aperfeiçoamento prático nas múltiplas disciplinas em permanente evolução requerem um estafante trabalho diuturno nas enfermarias e ambulatórios, bem como os intermináveis plantões curriculares, nas fases mais adiantadas.
Disputar, ao final, uma almejada vaga em prova extremamente seletiva, de habilitação à Residência Médica – que atualmente em nosso País estende-se por cerca de cinco anos – na especialidade de sua escolha, sem a qual estará fatalmente alijado do futuro mercado de trabalho. O ingresso atual em qualquer entidade, seja de natureza acadêmica ou profissional, tem como pré-requisito indispensável o titulo de especialista que normalmente é obtido em prova da especialidade, realizada após o término da Residência.
Resignar-se no início de sua atividade profissional a trabalhar em regime de plantões ou de atendimento ambulatorial, geralmente sob condições inadequadas, com deficiência de pessoal subalterno e falta de medicamentos e material mínimo necessário.
Exercer a sua atividade profissional em ambulatórios de hospitais, em geral chefiados por enfermeiras, sujeitando-se aos regulamentos e normas impostos pelo nosocômio.
Ser obrigado a dividir o consultório privado (se o tiver) com outros colegas, como única alternativa para poder suportar os exorbitantes gastos mensais.
Ver antigos colegas do curso ginasial ou de outros ofícios terem sucesso financeiro e social em suas respectivas profissões, enquanto amarga o recebimento de alguns poucos trocados, a título de remuneração (?), recebidos durante a longa e exaustiva etapa de Residência.
Permanecer em constante aprimoramento e atualização durante toda a sua vida profissional, com o nobre objetivo de proporcionar a seu paciente tudo aquilo que há de mais moderno e avançado em sua especialidade, sob pena inclusive de incorrer em falta ética ou de sofrer um processo por má prática médica.
Estar constantemente sujeito a um processo judicial por suposto “erro médico” –, uma verdadeira espada de Dâmocles a pairar sinistramente sobre sua cabeça –, seja por parte do próprio paciente ou de familiares, muitas vezes guiados por motivos inconfessáveis.
Contentar-se a perceber, já em franca atividade, um estipêndio afrontoso por seu trabalho altamente qualificado, sendo obrigado a aceitar salários aviltantes pelos famigerados planos de saúde ou por órgãos públicos, municipais, estaduais ou federais, novamente após concorrido concurso público, após ter enfrentado e superado centenas de concorrentes altamente qualificados.
Trabalhar, cada vez mais, até os limites de sua força física e intelectual na tentativa vã de compensar a baixa remuneração. Escolher entre o perfil de “quem estuda não trabalha, ou de quem trabalha não estuda”.
Entender que sua atribulada vida profissional deverá estender-se até uma fase etária já bastante adiantada, em que não tenha mais força de labuta, pois antevê que seus ganhos financeiros não serão suficientes para proporcionarlhe uma tranquila e justa aposentadoria.
Ter a consciência clara de que não terá, caso, por qualquer motivo, seja obrigado a parar de trabalhar, um régio benefício como se observa nas classes privilegiadas do funcionalismo público.
Ter humildade suficiente para reconhecer as suas falhas e saber ser digno dos seus sucessos.
Ter a sua vocação legitimada pelo altruísmo que pertence muito mais à consciência médica do que a um mero interesse pela eventual lucratividade pecuniária.
Enfim, apesar de todos os percalços e adversidades, penso que vale a pena ser médico, pois a medicina, mais do que uma simples aspiração, é pura vocação. É uma profissão instigante e desafiadora, diante dos seus intrincados segredos, tanto no que se refere ao diagnóstico como à terapêutica, seja cirúrgica ou medicamentosa.
Não há outra qualquer atividade humana que traga tanta satisfação e júbilo diante de uma vitória contra a morte inexorável. O lucro, embora justo, não é a recompensa maior. A fisionomia grata expressa pelo paciente é uma compensação inigualável.
A consciência médica da generosa tarefa, de cuidar e preservar aquilo que há de mais nobre e sagrado, que é a vida, faz do médico um profissional diferenciado e comprometido com a ética e com a sua própria consciência profissional.
Por isso, dentro de uma meditação final que se impõe, a abordagem médica deve ter por objetivo maior colocar a ciência milenar e a tecnologia emergente, acrescidas de uma larga dose do humanismo – que não deve jamais desaparecer – a serviço exclusivo do paciente, visando, dessa forma, lograr a cura total da enfermidade.
O sacrifício, as aflições, o cansaço, a renúncia a bens materiais, são vicissitudes inerentes à própria vocação médica.
Assim se resume a vida do médico contemporâneo.
Fonte: Revista da AMRIGS | out-dez 2009