Pietá

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pietáAs imagens do corpo do menino sírio Aylan Kurdi, 3 anos de idade, encontrado na praia de Bodrum, Turquia, em 3 de setembro, correram mundo e provocaram grande comoção. O fato ocorreu no contexto da grande massa de refugiados que tenta atravessar o Mediterrâneo, do Oriente Médio e da África para a Europa.

 

A família Kurdi tentava escapar das atrocidades da guerra e da miséria que assolam a região. Procurava alcançar a ilha de Kos, uma das que compõem o arquipélago conhecido como Dodecaneso, no litoral da Grécia. Aqui o trágico se reveste de simbologia irônica e cruel. Kos é a ilha em que nasceu e trabalhou Hipócrates, em torno de 400 anos antes de Cristo, considerado o pai da medicina natural e que dá o nome para o Juramento que continua a ser recitado até hoje pelos médicos que se formam. É um templo da Ética, portanto.

 

Mas o menino Aylan não alcançou a ilha de Kos, a ilha da Ética. Naufragou no mar de iniquidades que os seres humanos são capazes de perpetrar, ao longo dos séculos. A sensação de derrota é ampla e tende a nos dominar. Mas antes que nossas esperanças numa humanidade mais íntegra e generosa naufraguem junto, total e inexoravelmente, as imagens nos mostram também atitude do oficial recolhendo Aylan do abandono da morte. A imagem transmite piedade, consideração pela dignidade, nem que seja pelos seus restos mortais.

 

Talvez seja possível olhar para esta dupla mensagem, tanto da morte de um inocente, quanto da generosidade de quem o recolheu. É o resumo da luta permanente entre o lado destrutivo, tirânico e cruel versus o lado generoso, com consideração e construtivo que habita os seres humanos. A imagem é uma reprodução contemporânea da Pietá esculpida por Michelângelo em 1499, amparando em seus braços seu filho Jesus morto na cruz.

 

É possível que tenhamos de aceitar que não realizaremos, como humanidade, a utopia da vitória final do Bem sobre o Mal, mas que a Ética é resultado de uma luta permanente e eterna. É um exercício diligente e sem tréguas. Kos, como seu símbolo, continua real, viva, está lá. Nem todos, mas muitos a alcançarão. Em tempo: Pietá para todos nós.

 

Dr. Rogério Wolf de Aguiar

 

Fonte: REVISTA CREMERS | 2015

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