Câncer ginecológico: silencioso e grave

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Blog da Ginecologista Dra. Ana Lúcia Marques

Setembro é o Mês de Conscientização sobre o Câncer Ginecológico e uma época oportuna para destacar a importância do papel dos ginecologistas obstetras no diagnóstico precoce.

Estimativas do Instituto Nacional do Câncer (Inca) apontam que até o fim de 2022 serão registrados 49.770 casos de câncer de colo de útero no Brasil, o tipo de câncer ginecológico mais comum no país, além de ser o segundo câncer mais frequente nas mulheres das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, o quarto na região Sul e o quinto na população feminina do Sudeste.

“Esse câncer, tão frequente no Brasil, é justamente o que pode ser, teoricamente, erradicado, com medidas de prevenção”, apontou Suzana Arenhart Pessini, vice-presidente da Comissão Nacional Especializada (CNE) de Ginecologia Oncológica da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) e professora do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Há outros tipos de câncer ginecológico que também preocupam pela incidência. Até 2022, segundo dados do Inca, devem ocorrer 19.620 casos de câncer de corpo do útero e 19.950 de ovário. Somando os de colo de útero, serão praticamente, 30 mil casos novos por ano. Os números impressionam, principalmente porque, como destacou a Dra. Suzana, a maioria dessas neoplasias é diagnosticada tardiamente e, quando detectada precocemente, tem um desfecho favorável.

Devido à gravidade do cenário, no mês de setembro são realizadas diversas ações de conscientização sobre os fatores de risco, sinais e sintomas de alerta do câncer ginecológico (colo de útero, ovário, endométrio, vagina e vulva) e dos cuidados para manter a saúde da mulher sempre em dia. A presidente da CNE de Ginecologia Oncológica da Febrasgo, Dra. Walquíria Quida Salles Pereira Primo, professora adjunta de Ginecologia da Faculdade de Medicina na Universidade de Brasília (UnB), destacou o papel do médico nesta luta contra o câncer. “Ressaltamos a importância do médico ginecologista e obstetra na prevenção primária e no rastreamento das neoplasias ginecológicas que são rastreáveis, como o câncer do colo do útero”, disse a Dra. Walquíria.

Ela enfatizou que no caso dos tipos mais recorrentes de câncer, como o tumor de colo de útero, exames como um simples Papanicolaou permitem detectar a doença em sua fase inicial e podem ser decisivos na vida da paciente. “A grande maioria do câncer do colo do útero (99,7%) tem como agente causal certos tipos do papiloma vírus humano (HPV), um vírus de transmissão preferencialmente sexual, que infecta a célula e pode resultar em lesões pré-cancerosas até o câncer invasivo”, alerta Walquíria.

Na prevenção primária, existe a vacina contra o HPV, além de orientações sobre a importância do uso de preservativo e medidas educativas sobre o desestímulo do tabagismo. “Na prevenção secundária, há a colpocitologia oncótica convencional ou em meio líquido, um teste efetivo para detectar lesões pré-cancerosas de alto grau ou câncer.”

Mas por que, embora exista prevenção com vacina e rastreamento para detecção das lesões precursoras, o câncer do colo do útero está entre os cânceres mais incidentes e com maior mortalidade entre as mulheres? A Dra. Sophie Françoise Mauricette Derchain, professora titular de Ginecologia da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ), explica que a vacina contra HPV e o rastreamento baseado em citologia, com protocolos bem definidos de encaminhamento para colposcopia e excisão da zona de transformação do colo uterino estão disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS) e na saúde complementar, porém a cobertura nacional é muito baixa.

“Poucas mulheres são vacinadas e/ou fazem exames de rastreamento com frequência. Em contrapartida, muitas mulheres não são vacinadas e fazem poucos exames de rastreamento”, observou a médica.

Suzana Pessini completa que, por falta de programas de vacinação e de rastreamento efetivos, a Organização Mundial da Saúde lançou o projeto desafiador de eliminação do câncer de colo. “Os objetivos até 2030 são: vacinar 90% das meninas até 15 anos, fazer rastreamento com testes de alto desempenho em 70% das mulheres entre 35-45 anos e tratar 90% das mulheres com lesão pré-invasora ou câncer de colo. Aos profissionais da saúde cabe promover eventos de conscientização e a sociedade deve estar unida neste propósito”.

Na rede de atenção básica à saúde também estão disponíveis estratégias de diagnóstico para câncer de endométrio, ovário e vulva. Como exemplo, podemos citar vários métodos utilizados na atenção básica como biópsia aspirativa de endométrio, biópsia de vulva, ultrassom e outros exames de imagem para massas anexais. “A grande questão é o tempo necessário para sua realização, obtenção dos resultados e encaminhamento para tratamento”, destacou Sophie.

O câncer de colo de útero acomete mulheres desde os 25 anos até as idades mais avançadas, mas o pico de incidência ocorre por volta de 40 a 45 anos. “Nessa faixa etária, as mulheres estão economicamente ativas, responsáveis pelos cuidados com a família e pela educação dos filhos. Cerca de 70% das famílias de classe D são sustentadas por essas mulheres acometidas pelo câncer de colo de útero”, observou Renato Moretti Marques, coordenador do Serviço de Ginecologia Oncológica do Hospital de Ensino Vila Santa Catarina da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein e do Programa de Pós-Graduação em Cirurgia Robótica em Ginecologia do Hospital Albert Einstein.

Ou seja, se diagnosticado precocemente, muitas famílias deixarão de perder suas mulheres para uma doença grave. “Infelizmente, no nosso país diferentes tipos de câncer ginecológico são diagnosticados em estádio avançado, principalmente o câncer do colo do útero e do ovário. Já o câncer do corpo do útero, conhecido como câncer do endométrio, tem taxas melhores de diagnósticos precoces, mas ainda assim em estádios mais avançados quando comparados aos países desenvolvidos”, analisou Moretti Marques.

Apesar de não ser preconizado o rastreamento do câncer de endométrio, pois precocemente apresenta sintomas como sangramento vaginal após a menopausa, ele pode ser evitado reforçando-se as orientações sobre o estilo de vida (prevenção do sobrepeso e obesidade). A identificação de casos recorrentes de câncer do útero e de intestino na família também pode servir como sinal de alerta para o aspecto hereditário conhecido como síndrome de Lynch. A incidência do câncer do endométrio se dá entre os 45 e 50 anos de idade, mas o pico de incidência é por volta dos 75 anos de idade.

Segundo ele, no Brasil cerca de 35% a 40% das pacientes com câncer de endométrio são diagnosticadas em estágio II ou mais avançado, enquanto a maior parte dos casos de câncer de colo do útero e de ovário é detectada em estágios III e IV, na qual as taxas de cura são bem menores.

Por sua vez, o câncer de ovário acomete geralmente mulheres por volta dos 65 anos de idade. Por ser assintomático no início e não ter indicação de rastreio, costuma ser diagnosticado nos estágios III e IV, em 80% dos casos, quando a sobrevida é de apenas 20% a 30%, enquanto no estágio I é superior a 85%. O câncer de vulva, menos frequente e em geral apresentando sintomas de prurido, ardência e desconforto nas lesões iniciais, por causa de aspectos culturais, também tem diagnóstico tardio frequentemente.

Ou seja, o diagnóstico precoce figura como o maior desafio no tratamento dos cânceres ginecológicos no Brasil. Em algumas situações, a história familiar da mulher pode levantar suspeita de uma síndrome de câncer hereditário. “O câncer de ovário é hereditário em torno de 20% dos casos, e a mutação nos genes BRCA1 e BRCA2 corresponde a 83%. A análise molecular BRCA1 e BRCA2 está indicada em todas as mulheres com câncer de ovário epitelial não mucinoso, independentemente da idade ao diagnóstico, do histórico familiar e da história pessoal para outras neoplasias. E o aconselhamento genético está indicado em mulheres com história de câncer de ovário em parentes de primeiro grau”, explicou Suzana.

Segundo a médica, o câncer de endométrio também pode ser hereditário. “A síndrome do câncer colorretal hereditário não polipoide (HNPCC) ou síndrome de Lynch é a mais frequente, tem herança autossômica dominante e se caracteriza pela ocorrência de outros tumores nas famílias. O câncer extracolônico mais frequente nessa síndrome em mulheres é o de endométrio, seguido pelos de ovário, estômago, intestino delgado, ureter, bexiga, trato biliar e pâncreas. Em mulheres com história desses tumores na família, a investigação de Lynch está indicada.”

A Dra. Sophie ressaltou que esses dois tipos de câncer ginecológico (endométrio e ovário) podem estar associados à síndrome de Cowden, associada a câncer de mama, endométrio, assim como de cólon e outros, e à síndrome de Peutz- -Jeghers, associada a câncer de mama e ovário, assim como cólon e outros.

“É, portanto, fundamental que o ginecologista faça uma avaliação completa da história familiar de cânceres em geral, registrando tanto os antecedentes familiares encontrados em parentes do sexo masculino como feminino”, alertou Sophie.

Ela explicou que nem sempre se encontram mutações germinativas em famílias que apresentam maior incidência de câncer. E citou como exemplo uma mulher sem antecedente familiar de câncer que tem risco de desenvolver câncer de ovário durante a vida de cerca de 1,3%. Se essa mulher apresentar antecedentes familiares de câncer de ovário, o risco aumentará para cerca de 4,7. Já uma mulher sem antecedente familiar de câncer tem um risco de ter câncer de endométrio durante a vida de cerca de 2,7%. Quando portadora de síndrome de Lynch, esse risco aumenta para 20% a 57%.

“Entretanto, é fundamental entender que menos de 10% das mulheres com câncer de ovário/endométrio terão mutações germinativas identificadas. E a indicação de teste multigênico em mulheres sem câncer, com antecedentes familiares de câncer, deve ser bastante cuidadosa. Quando na família há uma mutação conhecida, é mais fácil identificar os verdadeiros positivos e os falso-negativos. Como a causa do câncer não é conhecida, um teste negativo não exclui a possibilidade de ter câncer. Quando não há mutação conhecida na família, a solicitação do teste e sua interpretação deve ser sempre realizada com o oncogeneticista”, ponderou Sophie.

DESAFIOS DO DIAGNÓSTICO

De acordo com a Dra. Sophie, os protocolos de diagnóstico e tratamento de câncer ginecológico no Brasil são claros e disponíveis, porém “rastrear, diagnosticar e tratar câncer requer uma estrutura extremamente complexa”.

Ela explicou: “Sabemos, por exemplo, que o câncer do colo do útero poderia ser erradicado vacinando os jovens até 15 anos e rastreando e tratando as mulheres com lesões precursoras. Sabemos também que o câncer de endométrio é facilmente detectado em estádios iniciais, pois a maioria das mulheres apresenta sangramento uterino anormal. E, por fim, temos ciência de que o câncer de ovário, doença de menor incidência e maior mortalidade proporcional, não é rastreável, e assim a única maneira de melhorar a sobrevida dessas mulheres seria oferecer um atendimento rápido e extremamente complexo, no menor prazo possível. Porém, o panorama nacional mostra que, embora a incidência do carcinoma de colo invasor esteja diminuindo, a mortalidade por essa doença continua a mesma. Muitos casos de câncer de endométrio chegam ao especialista em estádios avançados. E mulheres com carcinoma de ovário muitas vezes são atendidas já com doença irressecável. Entre as mulheres brasileiras, 75% são atendidas pelo SUS e sabemos que há uma grande disparidade nacional, regional e mesmo entre os municípios, relacionada a infraestrutura e recursos humanos necessários para o diagnóstico e tratamento”.

A Dra. Walquíria endossou a análise da Dra. Sophie, completando que, de fato, no Brasil, existem disparidades regionais devido às distintas características socioeconômicas e culturais. “A baixa condição socioeconômica interfere no acesso a serviços de rastreamento, diagnóstico e tratamentos oportunos. Consequentemente, as limitações de acesso a serviços de saúde não somente impedem muitas mulheres de serem adequadamente rastreadas, diagnosticadas, mas também impossibilitam a oportunidade de receberem tratamento a tempo de se obter a cura.”

A Dra. Walquíria comentou sobre um artigo publicado em 2017, por Mendez e colaboradores, intitulado Cancer Deaths due to Lack of Universal Access to Radiotherapy in the Brazilian Public Health System, referindo que o sistema público de saúde brasileiro atende 75,32% dos pacientes com câncer, ou seja, cerca de 448.959 casos de câncer foram atendidos na rede pública em 2016. O Brasil tem apenas 50,8% da quantidade necessária de equipamentos de radioterapia. E a radioterapia tem papel importante como tratamento adjuvante ou exclusivo, sobretudo no câncer do colo do útero e do endométrio, conforme a extensão dessas doenças.

As regiões com alta incidência do câncer do colo do útero são as que têm menores coberturas vacinal e de rastreamento. De acordo com a estimativas do Inca para o ano de 2020, no Amazonas, serão 51,94 casos novos de câncer do colo do útero por 100.000 mulheres. No entanto, em São Paulo, esperam-se 8,45 por 100.000 mulheres. “Por conseguinte, os diagnósticos são realizados na fase avançada da doença, cujo tratamento é a radioterapia e a quimioterapia, logo, a escassez de aparelhos de radioterapia afeta a sobrevida global e várias mortes poderiam ser evitadas se o acesso à radioterapia fosse universal no Brasil. Quase nove de cada dez óbitos por câncer do colo do útero ocorrem em regiões menos desenvolvidas, onde o risco de morrer de câncer cervical antes dos 75 anos é três vezes maior”, analisou Walquíria Primo.

PAPEL DO MÉDICO

Diante de todo esse cenário de detecção tardia, que provavelmente foi agravado com a pandemia, o papel do ginecologista no rastreamento do diagnóstico do câncer ginecológico é primordial e o profissional pode contar com o apoio da Febrasgo para se manter atualizado sobre como proceder nas consultas.

Segundo a Dra. Walquíria, a CNE de Ginecologia Oncológica trabalhou na atualização de vários protocolos de conduta nas lesões precursoras do câncer do colo do útero, vagina e vulva, no câncer do colo do útero, no câncer do endométrio, no câncer de vulva e no câncer de mama e do colo do útero em gestantes, que já foram enviados à Febrasgo. “Temos projetos para a criação de novos protocolos, de realização de webinários com o propósito de oferecer atualização e educação continuada, podcasts e tutoriais sobre cirurgias, medidas sociais, além de investir em pesquisa”, afirmou.

O Dr. Renato Moretti Marques, que também é membro da CNE de Ginecologia Oncológica da Febrasgo, reforçou que essa atualização é essencial, pois toda a estratégia de rastreamento do câncer ginecológico e de significância do papel do ginecologista no diagnóstico foi redesenhada.

Se antes a adolescente que procurasse um ginecologista recebia a orientação para utilizar a camisinha como principal ferramenta no combate à infecção pelo HPV, hoje o ideal é: “essas meninas devem ser orientadas tanto pelo ginecologista quanto pelos pediatras e clínicos gerais para que recebam a vacina contra a infecção pelo HPV e desde o início da atividade sexual devem ser orientadas quanto às doenças sexualmente transmissíveis”, exemplificou.

“O ginecologista tem papel relevante no diagnóstico e no tratamento das lesões pré-cancerosas e do câncer do colo do útero em estágio inicial”, afirmou Moretti Marques. “O recado é que, mesmo com a experiência da pandemia pelo COVID-19, essas mulheres devem procurar o ginecologista para fazer seus exames rotineiros para investigação para rastreamento das neoplasias malignas da mama, do ovário, do colo do útero e do endométrio.” “Não há dúvida que o câncer ginecológico deve ser diagnosticado e tratado sem demora. Diagnosticar o câncer precocemente permite que ele seja tratado eficientemente, a menor custo e com menos complicações”, finalizou a Dra. Sophie Derchain, que também integra a CNE de Ginecologia Oncológica da Febrasgo.

Por Letícia Martins

Fonte: Revista Femina – Setembro 2020

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