Existe um provérbio africano que diz “É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”. Para uma mãe mais desavisada ou insegura quanto à sua responsabilidade com um bebê que virá para seus cuidados, o ditado pode parecer assustador. Afinal, que tarefa tão hercúlea é essa que exige a união de uma comunidade inteira? Entretanto, o ditado deve ser interpretado de forma bem diferente.
De início, considera-se que no século XXI vivemos em uma “aldeia digital”, em que as conexões com o outro lado do mundo podem ser mais rápidas do que com nosso vizinho de rua. Esse é um dos motivos para ponderar que a construção de valores de uma criança não fica mais restrita Provérbio africano fala sobre a tarefa de educar e a importância da interação com o outro aos repassados pela antiga família nuclear, constituída de pai, mãe, irmãos e, no máximo, avós. A criança aprende com o mundo que a rodeia. Ou seja: na grande aldeia que é a sociedade contemporânea somos todos coadjuvantes, em especial no período da primeira infância, quando as conexões são ainda mais importantes.
A psicóloga Maria Cristina Lemes Bressani explica que somos seres sociais e é na interação com o outro que nos constituímos e construímos nossas aprendizagens. “O outro, no caso, pode significar mãe, pai, familiares, amigos, adultos, crianças, ambiente, instituições, televisão, internet, etc. Influenciamos e sofremos influências diretas e constantes do ambiente em que vivemos”, observa.
Mestre em Psicologia do Desenvolvimento, Maria Cristina explica que desde muito cedo os bebês aprendem com aqueles que são os responsáveis por seus cuidados e também com os iguais. Estudos sobre bebês em creches têm demonstrado que a imitação dos coleguinhas é uma forte ferramenta de aprendizagem para os pequenos, que trocam entre si e aprendem variadas habilidades na interação com outros bebês.
“Somos seres mergulhados em interações mediadas por indivíduos, que se encontram imersos em uma rede de elementos indissociáveis: família, contexto, tempo, cultura, interações, habilidades, necessidades, demandas, etc. Sendo assim, temos a importante função de colaborar para que nossos filhos sejam capazes de transitar por nossa cultura, conhecer nossa história e construir valores que sirvam de base segura para que eles possam se desenvolver plenamente”, alerta a psicóloga.
Representatividade
Há poucos meses, um fato pitoresco ocorrido nos Estados Unidos e que viralizou na internet pode explicar a importância dessas conexões. A empresária negra Jessica Curry levou a filha de 2 anos à National Portrait Gallery, em Washington. Depois de percorrer os corredores do museu, a pequena Parker parou fascinada em frente a um quadro de Michelle Obama. E ali ficou estática, boquiaberta durante um tempo, sem que a mãe conseguisse, ao menos, fazê-Ia posar para uma foto.
“Eu percebi que Parker achou que Michelle Obama fosse uma rainha, e que ela também quer ser uma rainha. Como mulher e negra, é muito importante que eu mostre pessoas como ela que fazem história para que ela saiba que também pode fazer”, disse a mãe à imprensa, após a imagem circular pelo mundo.
Jessica Curry colocou em prática o provérbio: conectou a pequena a novas realidades, mostrando a ela o leque de possibilidades que estão à sua disposição no mundo. Ainda que não entenda racionalmente o que significa representatividade, a menina foi apresentada a uma ideia: sim, uma mulher negra, que se parece com ela, também merece ser retratada com destaque em um grande espaço cultural. O registro – seja consciente ou inconsciente – será de grande valia para a construção da. sua autoimagem e, sem dúvida, irá colaborar para a formação da sua personalidade.
A mãe cumpriu seu papel, proporcionando a experiência à filha. Da mesma forma, pela perspectiva de responsabilidade de ser uma figura pública, Michelle também. Seja como modelo para a artista plástica Amy Sherald, seja por ter convidado a menina para uma visita à Casa Branca, a sensibilidade da primeira-dama poderá tornar-se um diferencial na trajetória adulta da garota.
Rede de conexões
É especialmente nesse período em que se encontra Parker, na primeira infância, que essas conexões começam a se formar e cabe aos pais disponibilizar essa rede de possibilidades e de responsabilidades. Embora seja nos primeiros 6 anos que acontecem as grandes transformações e conquistas que servirão de base, muitas das vivências da puberdade e adolescência irão se refletir em toda a vida adulta futura.
A filósofa alemã Hannah Arendt já falava sobre isso em meados do século passado. Trabalhando com temas que envolviam política, autoridade e ensino, entre outros, ela dizia que “a educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele”. Hannah Arendt defendia que os adultos têm obrigações em relação às crianças, não só em casa, mas na escola, de forma a contribuir para o crescimento de todos. Ela chamava atenção para a responsabilidade coletiva.
Mas não são só em casos semelhantes ao ocorrido na National Portrait Gallery que uma “aldeia” é importante. Pais, escolas e sociedade, todos são responsáveis por uma rede de proteção quando vivências nefastas podem atingir crianças e adolescentes. Os acontecimentos negativos, como, por exemplo, a violência nas suas mais variadas formas, podem – e devem – ser combatidos por todos.
O que convencionou-se chamar de bullying, por exemplo, requer um trabalho a partir de intervenções multidisciplinares e seus resultados se dão em relação a todas as crianças da “aldeia”, que vivenciam um sentimento de que todos devem estar unidos e de que elas também estarão protegidas. pelo mundo, referindo-se a essa grande aldeia, onde todos somos responsáveis por todos e pelo futuro da própria aldeia.
A psicóloga Maria Cristina cita outro ditado complementar: “um exemplo vale mais que mil palavras”. Ou seja, todos – escola, família e sociedade – ensinam atitudes necessárias para nos tornarmos seres sociais. E isso é importante ser entendido, principalmente em um momento em que famílias delegam à escola ou à tecnologia a função da educação. “Nós, enquanto pais, precisamos estar atentos ao nosso papel. Onde estamos deixando chegar os exemplos que acessam nossos filhos e que nossos filhos acessam?”, questiona.
Fonte: Revista Fertilitat