Não é uma tristeza que logo passa nem é só uma fase ruim. Depressão pós-parto é uma doença séria, mal diagnosticada e com frequência confundida com a tristeza materna.
A tristeza materna, ou blues puerperal, caracteriza-se basicamente pelo sentimento de tristeza e choro fácil que não impedem a realização das tarefas da mãe. É extremamente prevalente, sendo manifestada por cerca de 50% das mulheres. “É uma condição benigna que se inicia nos primeiros dias após o parto (dois a cinco dias), dura entre alguns dias e poucas semanas, tem intensidade leve e, em geral, não requer uso de medicações, pois é autolimitada e cede espontaneamente”, explicou o médico obstetra e ginecologista, Alberto Trapani Júnior, presidente da Comissão Nacional Especializada (CNE) de Assistência ao Parto, Puerpério e Abortamento da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo).
Por outro lado, a depressão pós-parto ou, melhor dizendo, depressão perinatal, já que ela pode ocorrer durante a gestação até um ano após o parto, inclui muitos fatores, entre eles a oscilação dos níveis de hormônios reprodutivos, alterações tireóideas, disfunções na produção hormonal, anormalidades do colesterol e ácidos graxos e vulnerabilidade genética.
Ou seja, é uma doença mental que merece diagnóstico correto e tratamento adequado. Contudo, embora a depressão puerperal também seja muito comum entre as brasileiras, com prevalência que varia de 7% a 20%, ela não tem sido devidamente detectada. “Vários estudos demonstraram que 60% a 80% dos casos de depressão puerperal não são adequadamente diagnosticados. O assunto precisa ser abordado durante o pré-natal, quando devem ser reforçadas a importância do diagnóstico e a segurança de um possível tratamento”, afirmou Trapani.
Essa conversa entre o ginecologista e a paciente é extremamente importante, principalmente se analisarmos o problema com um olhar macro. No Brasil, a prevalência da depressão ao longo da vida é em torno de 15%. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 10,4% de todas as mulheres atendidas na rede de atenção primária de saúde têm algum quadro de depressão associada a um sintoma físico. “Às vezes, as pessoas vão à unidade de saúde investigar algum problema e não encontram sintomas de uma doença clínica, mas acabam tendo uma manifestação na somatização do quadro depressivo”, apontou o psiquiatra Joel Rennó Jr., um dos principais estudiosos e conhecedores da saúde mental no Brasil, com ênfase em psiquiatria feminina.
O professor do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do Programa Saúde Mental da Mulher do Instituto de Psiquiatria da USP Rennó Jr. alerta para uma consequência nem sempre evidente para a maioria das pessoas: “A depressão gera perdas de anos de qualidade de vida”. Essa afirmação do Dr. Joel é corroborada pelos dados da OMS, que revela que a depressão aparece, em média, entre as cinco primeiras doenças com maior causa de ônus durante a vida e ocupa o primeiro lugar se considerarmos a incapacitação ao longo da vida.
Segundo o psiquiatra, a depressão pode ocorrer desde a infância e adolescência, sendo mais comum na terceira década de vida e com maior incidência na terceira década de vida. Ao comparar o público masculino com o feminino, os números são taxativos: mulheres sofrem muito mais de depressão do que os homens. Enquanto a prevalência da doença nelas é de cerca de 20%, nos homens gira em torno de 12%. “Uma em cada cinco mulheres tem depressão em algum período de sua vida”, declarou Rennó Jr.
Trazendo para a realidade a gestante, Rennó Jr. ratifica: a depressão perinatal é bastante comum, “ao contrário do que muitas vezes as pessoas e até profissionais de saúde falam, de que a gestação seria um período protetor com menores riscos de depressão”. “Atualmente, nem usamos mais o termo depressão pós-parto, pois sabemos que cerca de 60% dos quadros de depressão ocorrem no início da gestação, mas infelizmente muitas vezes não são diagnosticados no pré-natal”, esclareceu o professor da USP.
A Dra. Alessandra Cristina Marcolin, professora-associada do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, argumenta que existem vários fatores que contribuem para a subnotificação dessa doença mental durante a gestação. Um deles, disse a médica, é a dificuldade que a sociedade tem em acreditar ou mesmo aceitar que uma mulher gestante ou que acabou de ter um filho possa estar deprimida. “As pessoas acham que estar grávida é sempre algo maravilhoso. Muitas nem imaginam que a depressão possa ocorrer durante a gestação”, observou a coordenadora do Setor de Medicina Fetal do Hospital das Clínicas da FMRP-USP e vice-presidente da CNE em Assistência ao Abortamento, Parto e Puerpério da Febrasgo.
“Tem outro lado que é o estigma da doença mental. As mulheres sentem culpa e vergonha por estarem passando por isso em um momento tão importante na vida delas, mas não falam sobre o que estão sentindo. Elas omitem os sintomas e isso só aumenta a importância do nosso papel como profissionais de saúde. Todos nós, ginecologistas e obstetras, precisamos prestar atenção nessa mulher que já tem fatores de risco para depressão”, alertou Alessandra.
“Em recente revisão sistemática os fatores de risco mais identificados para DPP foram gestação não planejada, falta de apoio/social/familiar, antecedente pessoal de doença psiquiátrica (depressão, história pregressa de comportamento suicida, ou crises de ansiedade), relacionamento ruim com o parceiro, idade menor que 20 anos e baixa escolaridade. “Identificaram-se ainda como fator de risco a violência doméstica e a história familiar de depressão”, completou Dra. Stenia.
CAUSAS, MITOS E QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS
A falta de conhecimento da sociedade sobre o assuntoanda de braços dados com diversos mitos criados em torno da gestação, como o mito da mãe perfeita, “que impõeà maternidade uma forte pressão e é responsável por frustrações de expectativas idealizadas e socialmente cobradas”, como analisou a Dra. Stenia dos Santos Lins, médicaaposentada da Secretaria de Saúde Pública do Rio Grandedo Norte (SESAP) e da Maternidade Escola Januário Cicco da Universidade do Rio Grande do Norte (MEJC/UFRN),onde coordenou dois programas importantes: um de atenção à saúde reprodutiva de adolescentes e outro de atenção à mulher em situação de violência sexual.
Para a Dra. Stenia, a dupla jornada com a inserção da mulher no mercado de trabalho adicionou a ela uma sobrecarga, além de desfavorecer a aceitação das limitações diárias para o desempenho do seu papel materno,“imprimindo-lhe grande dose de sofrimento e culpa”. “Há pressões culturais sobre as mulheres que invariavelmente exercem a maternidade. Há ainda uma visão romanceada e perfeita desse período de vida, o que é incompatível com as vivências reais da mulher moderna. Se a mulher não se enquadra nesse padrão e se depara com sentimentos ambivalentes ao cumprir o seu papel, sentimentos de incapacidade, ansiedade e culpa são inevitáveis, suscitando, dessa maneira, conflitos que predisporiam à depressão pós-parto”, refletiu a médica.
Ela chamou a atenção para o caso de mães que tiveram partos de prematuros, bebês malformados ou que não conseguem amamentar. “Essas merecem cuidados puerperais em saúde mental redobrados”, salientou.
Outro mito ainda bastante persistente refere-se à estigmatização de pessoas com transtornos psíquicos. Segundo a Dra. Stenia, esse estigma inibe a procura por um profissional de saúde mental e “tem sido responsável por atraso no diagnóstico, agravamento de sintomas, postergação de tratamento, automedicação, e tudo isso é ratificado pela própria família. Há muita resistência em procurar um psicólogo, em aderir a psicoterapias e na utilização de psicofármacos quando necessário, com ajuda de um especialista”.
E voltamos à raiz do problema: como melhor a acurácia diagnóstica da depressão perinatal? Elias Melo Jr. é professor de Obstetrícia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e chefe da Unidade de Atenção à Saúde da Mulher do Hospital das Clínicas da UFPE, e fez o doutorado em Tocoginecologia, com tese sobre depressão pós-parto. Ele reconhece que o assunto “ainda não é uma entidade com a qual o médico tocoginecologista tenha muita familiaridade”, mas coloca luz na discussão.
“Nós temos a tendência de subvalorizar a sintomatologia, considerar uma simples adaptação a um momento de estresse, no máximo uma blues puerperal. É necessário sensibilizar os colegas para a necessidade de aplicar os questionários disponíveis, como a Escala de Depressão Pós-Natal de Edimburgo (EPDSS), em casos sugestivos, para iniciar a terapia, como também ter consciência da importância do trabalho multidisciplinar, criando uma cadeia de suporte para a mulher nesse momento tão desafiador da vida, que é o puerpério, especialmente os dois primeiros meses pós-parto”, declarou o Dr. Elias, que também integra a CNE de Assistência ao Parto da Febrasgo.
O Dr. Rennó Jr. reforça o apelo: “Os colegas obstetras e ginecologistas são, indubitavelmente, os médicos de referência e de confiança da mulher. Por essa razão, é importante que vocês, de alguma forma, façam esse diagnóstico inicial, pois, sem dúvida alguma, o rastreamento precoce leva a um bom prognóstico e o tratamento tende a ser mais eficaz”.
ACOMPANHAMENTO DA MULHER NO PUERPÉRIO APÓS A ALTA HOSPITALAR
Com larga experiência na área, a Dra. Stenia destaca a importância do acompanhamento da mulher no puerpério após a alta hospitalar como uma ótima oportunidade para o diagnóstico da depressão pós-parto. Segundo ela, o Ministério da Saúde recomenda, pelo Programa Saúde da Família, uma visita nos primeiros 10 dias após o parto como forma de detecção precoce de alguns sinais ou sintomas depressivos ou adaptativos, responsáveis por desencadear a depressão pós-parto.
“É preconizado também um retorno à unidade de saúde com 30 a 40 dias. Essa consulta não deve ser restrita ao exame físico ou ao planejamento reprodutivo. Se a paciente já fazia uso de psicofármacos, é o momento de avaliação e ajustes e reavaliação do quadro depressivo, que pode sofrer exacerbação nesse período”, esclareceu a médica.
Ela reconhece e salienta que nem sempre é fácil fazer o diagnóstico, uma vez que os sintomas podem ser confundidos com exaustão e noites mal dormidas, adaptação à nova dinâmica familiar e cuidados com o bebê. “Muitas vezes, esses sintomas são subestimados pela própria puérpera ou sua família, já que o quadro clínico pode variar na apresentação e intensidade dos sinais. Nas primeiras duas semanas pós-parto, podem ocorrer sintomas depressivos em grau mais leve, tais como tristeza, maior labilidade emocional, irritabilidade, problemas com o apetite e o sono, sensação de cansaço e exaustão, configurando baby blues”, citou a Dra. Stenia, ratificando o panorama que apresentamos no início da reportagem.
O psiquiatra Rennó Jr. esclarece que todo quadro depressivo precisa ter um dos sintomas cardinais, que são humor deprimido ou anedonia (perda da capacidade de sentir prazer ou interesse pelas atividades habituais). O espírito animado que prevalecia no pré-natal cede lugar à desmotivação, incluindo cuidados com a saúde. A mulher deixa de se alimentar de forma saudável, começa a faltar nas consultas de pré-natal, pode consumir álcool, tabaco e outras substâncias nocivas, além de apresentar dificuldades no trabalho e viver em constante quadro de insônia ou de sonolência excessiva.
“Muitas vezes, essa paciente relata desânimo, fadiga, tristeza, crises de choro e começa a ter uma perspectiva negativa em relação ao momento do parto, julgando-se incapaz de ser uma boa mãe. Se esses pensamentos negativos se tornam frequentes e presentes por pelo menos duas semanas, o médico precisa fazer o diagnóstico de depressão”, afirmou Rennó Jr.
Sem dúvida, uma avaliação do especialista, no caso o psiquiatra, é importante. “Hoje, nós trabalhamos muito com equipe multidisciplinar, mas é fundamental que o médico de referência da mulher, no caso o obstetra, faça o diagnóstico e, se for o caso e ele se sentir seguro, inicie o tratamento.”
A depressão não tratada pode levar a puérpera ao limite. Se você pensou em suicídio, lamento informar que sim, pode acontecer em casos graves. “A confusão entre a depressão puerperal e o transtorno bipolar pode levar a um tratamento inefetivo, episódio maníaco-psicótico e aumento do risco de suicídio”, alertou Alberto Trapani.
TRATAMENTO E APOIO FAMILIAR
Tão importante quanto diagnosticar bem e precocemente, é iniciar o tratamento correto. No artigo de capa desta edição, os autores convidados explicam a abordagem terapêutica para os casos de depressão, mas nunca é demasiado dizer que o tratamento deve ser individualizado. De acordo com as características de cada mulher, pode envolver desde ajustes sociais, terapia cognitivo-comportamental, terapia interpessoal, medicamentos antidepressivos e, em casos graves, até a indicação de eletroconvulsoterapia.
Outro ponto que vale ressaltar são os desafios, muitas vezes invisíveis, que precisam ser superados nessa fase para tratamento eficaz.
O medo de ficar dependente do medicamento está nessa lista. O Dr. Rennó Jr. confirma que, na área de saúde mental, muitos confundem os tipos de fármacos. No tratamento da depressão pós-parto, a classe de medicamentos utilizada é a de antidepressivos, sendo os mais usados os inibidores seletivos da recaptação da serotonina, e não existem evidências científicas que mostrem risco de dependência. “Ninguém fica dependente de antidepressivo”, afirmou o psiquiatra da USP.
A vice-presidente da CNE de Assistência ao Parto, Puerpério e Abortamento da Febrasgo aponta outro desafio ainda: “Existe o lado da paciente, com seus medos e estigmas, mas há também o lado do profissional da saúde, que pode ter receio de usar medicações durante a gravidez ou na fase da amamentação”, contrapôs Dra. Alessandra Marcolin. “Esses antidepressivos podem ser administrados por lactantes, porque passam muito pouco para o leite maternal”, esclareceu Rennó Jr.
A confusão, segundo o psiquiatra, ocorre porque muita gente chama os populares ansiolíticos, que são drogas usadas para diminuir a ansiedade e a tensão, com um efeito calmante, de antidepressivos. “Ansiolítico e calmante têm potencial de dependência química, mas é bom esclarecer que eles não são antidepressivos. Essa é uma informação importante até para o médico esclarecer para a paciente.”
Por fim, mas não menos importante, é fundamental que as mulheres se sintam apoiadas não só pela equipe médica quanto pela família. Longe de ser um mar de rosas, com ondas calmas e pequenas, a gestação e a maternidade já têm desafios demais para que a sociedade ainda coloque mais peso e culpa nas costas das mulheres. É tempo de acolhimento, que também não pode ser deixado para depois.
Por Letícia Martins
Fonte: Revista Femina – Agosto 2020